Estudo sobre a Lei e a Graça (Êxodo 20)
É da maior importância compreender o verdadeiro caráter e o objeto da
lei moral [1], como nos é apresentada em Êxodo 20. Existe uma tendência no
homem para confundir os princípios da lei com graça, de sorte que nem a lei nem
a graça podem ser perfeitamente compreendidas. A lei é despojada da sua austera
e inflexível majestade, e a graça é privada de todos os seus atrativos
divinos.
|
·
A Lei e
a Graça
|
As santas exigências de Deus ficam sem
resposta, e as profundas e múltiplas necessidades do pecador permanecem
insolúveis pelo sistema anómalo criado por aqueles que tentam confundir a lei
com a graça. Com efeito, nunca podem confundir-se, visto que são tão distintas
quanto o podem ser duas coisas.
A lei mostra-nos o
que o homem deveria ser; enquanto que a graça demonstra o que Deus é. Como
poderão, pois, ser unidas num mesmo sistema?- Como poderia o pecador ser salvo
por meio de um sistema formado em parte pela lei e em parte pela graça?
Impossível: ele tem de ser salvo por uma ou por outra.
A lei tem sido às vezes chamada "a expressão do pensamento de Deus". Mas esta definição é inteiramente inexata. Se a considerássemos como a expressão daquilo que o homem deveria ser, estaríamos mais perto da verdade.
A lei tem sido às vezes chamada "a expressão do pensamento de Deus". Mas esta definição é inteiramente inexata. Se a considerássemos como a expressão daquilo que o homem deveria ser, estaríamos mais perto da verdade.
Se eu considerar os dez mandamentos
como a expressão do pensamento de Deus, então, pergunto, não há nada mais no
pensamento de Deus senão "farás" isto e "não farás" aquilo?
Não há graça, nem misericórdia nem bondade? Deus não manifestará aquilo que é,
nem revelará os segredos profundos desse amor que enche o Seu coração? Não
existe nada mais no coração de Deus senão exigências e proibições
severas"?
Se fosse assim, teríamos de dizer que
"Deus é lei" em vez de dizermos que " Deus é amor". Porém,
bendito seja o Seu nome, existe muito mais em Seu coração do que jamais poderão
expressar os "dez mandamentos" pronunciados no monte fumegante. Se
quero saber o que Deus é, devo olhar para Cristo; "porque nele habita
corporalmente toda a plenitude da divindade" (Cl 2:9).
"Porque
a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo"
(Jo 1:17).
Certamente, na lei achava-se uma certa
medida de verdade; continha a verdade quanto àquilo que o homem deveria ser.
Como tudo que emana de Deus, a lei era perfeita — perfeita para alcançar o fim
a que era destinada; porém esse fim não era, de modo nenhum, revelar, perante
pecadores culpados, a natureza e o caráter de Deus. Não havia graça nem
misericórdia.
"Quebrantando alguém
a lei de Moisés, morre sem misericórdia" (Hb 10.28).
"O homem que fizer estas coisas viverá por elas" (Lv 18:5; Rm 10:5).
"Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las" (Dt 27:26; Gl 3:10).
Nada disto era graça. Com efeito, o
monte Sinai não era o lugar para se procurar tal coisa. Jeová revelou-Se ali em
majestade terrível, no meio da obscuridade, trevas, tempestade, trovões e
relâmpagos. Estas circunstâncias não são aquelas que acompanham uma dispensação
de graça e misericórdia; mas eram próprias de uma dispensação de verdade e
justiça: e a lei não era mais que isso.
Na lei Deus declara o que o homem deveria ser, e pronuncia a maldição sobre ele se o não for. Ora quando o homem se examine à luz da lei descobre que é precisamente aquilo que a lei condena. Como poderá ele, portanto, obter a vida por meio da lei?
A lei propõe a vida e a justiça como os
fins a alcançar, guardando-a; mas mostra-nos, desde o primeiro momento, que nos
encontramos num estado de morte e iniquidade. Precisamos desde o primeiro
momento das mesmíssimas coisas que a lei propõe alcançar-nos no fim.
Como vamos nós, portanto, obtê-las?
Para cumprir aquilo que a lei requer é preciso que eu tenha vida; e para ser o
que a lei exige devo possuir a justiça; e se eu não tiver vida e justiça sou
"maldito".
Porém, o fato é que eu não tenho uma nem a outra. Que devo então fazer?
- Eis a questão. Que respondam aqueles que querem ser "doutores da
lei" (1 Tm 1.7): que dêem uma resposta própria para uma consciência reta,
curvada sob o sentido duplo da espiritualidade e inflexibilidade da lei e a sua
carnalidade desesperada.
O Propósito da Lei de Deus
O Propósito da Lei de Deus
A verdade é que, como nos ensina o
apóstolo, a lei veio para que a ofensa abundasse (Rm5:20). Isto mostra-nos
claramente o verdadeiro objetivo da lei: veio a propósito para que o pecado se
fizesse excessivamente maligno (Rm 7:13).
Era, em certo sentido, como um espelho perfeito enviado para revelar ao homem o seu desarranjo moral. Se eu me puser diante de um espelho com o meu vestuário desarranjado, o espelho mostra-me o desarranjo, mas não o põe em ordem.
Se eu fizer descer sobre um muro tortuoso um prumo, o prumo mostra a tortuosidade, mas não a altera.
Se eu sair numa noite escura com uma luz, esta revela-me todos os obstáculos e dificuldades que se acham no caminho, mas não os remove.
Além disso, o espelho, o prumo, e a luz não criam os males que revelam distintamente: nem os criam nem os afastam, apenas os revelam.
O mesmo acontece com a lei: não cria o mal no coração do homem nem tampouco o tira; mas revela-o com infalível exatidão.
Era, em certo sentido, como um espelho perfeito enviado para revelar ao homem o seu desarranjo moral. Se eu me puser diante de um espelho com o meu vestuário desarranjado, o espelho mostra-me o desarranjo, mas não o põe em ordem.
Se eu fizer descer sobre um muro tortuoso um prumo, o prumo mostra a tortuosidade, mas não a altera.
Se eu sair numa noite escura com uma luz, esta revela-me todos os obstáculos e dificuldades que se acham no caminho, mas não os remove.
Além disso, o espelho, o prumo, e a luz não criam os males que revelam distintamente: nem os criam nem os afastam, apenas os revelam.
O mesmo acontece com a lei: não cria o mal no coração do homem nem tampouco o tira; mas revela-o com infalível exatidão.
"Que diremos pois? É a lei pecado?-
De modo nenhum; mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não
conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: Não cobiçarás" (Rm
7:7).
O apóstolo não diz que não teria tido "concupiscência". Não, mas apenas que não a teria conhecido. A "concupiscência" existia; mas ele estava às escuras quanto ao fato, até que a lei, como a luz do Deus Onipotente, brilhou nos recessos tenebrosos do seu coração e revelou o mal que nele havia.
Assim como um homem numa câmara escura pode estar rodeado de poeira e confusão sem contudo poder ver nada por causa da escuridão. Mas deixai que os raios de sol penetrem ali e ele distinguirá imediatamente tudo. São os raios de sol que formam o pó? Certamente que não. O pó encontra-se ali, e os raios de sol apenas o detectam e revelam.
Isto é apenas uma simples ilustração dos efeitos da lei: julga o caráter e a condição do homem. Julga o pecador e encerra-o debaixo da maldição: vem para julgar o que ele é e amaldiçoa-o se ele não é o que ela lhe diz que deve ser.
A Lei Condena o Pecador
É, portanto, claramente impossível que
alguém possa obter a vida e a justificação por meio daquilo que só pode
amaldiçoá-lo; e a menos que a condição do pecador e o caráter da lei sejam
inteiramente alterados, a lei não pode fazer mais que amaldiçoá-lo.
A lei não é indulgente com as
fraquezas, e não reconhece a obediência sincera, embora imperfeita. Se fosse
este o caso, não seria aquilo que é, "santa, justa e boa" (Rm7:12). É
justo que o pecador não possa obter vida pela lei porque a lei é aquilo que é.
Se o pecador pudesse obter vida pela
lei, a lei não seria perfeita, ou então ele não seria pecador. É impossível que
o pecador possa obter vida por meio de uma lei perfeita, porque, embora seja
perfeita, tem de condená-lo: a sua perfeição absoluta manifesta e sela a ruína
e condenação do homem.
"Por
isso, nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque
pela lei vem o conhecimento do pecado" (Rm 3:20).
O apóstolo não diz que o pecado é pela
lei, mas somente que por ela vem o conhecimento do pecado.
"Porque
até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado não havendo
lei" (Rm 5:13).
O pecado existia, e precisava apenas da
lei para o manifestar na forma de "transgressão". É como se eu
dissesse a meu filho: "não deves tocar nessa faca". A minha proibição
revela a tendência do seu coração para fazer a sua própria vontade.
O apóstolo João diz que o "o
pecado é iniquidade" (1 Jo 3:4). A palavra "transgressão" não
traduz o verdadeiro pensamento do Espírito Santo nesta passagem [2]. Para que
haja transgressão é necessário que seja estabelecida uma regra ou linha de
conduta definida; porque transgressão quer dizer cruzar uma linha proibida; essa
linha têmo-la na lei.
Tomemos por exemplo algumas das suas
proibições: "Não matarás", "Não cometerás adultério",
"Não furtarás". Aqui tenho, pois, uma regra ou linha posta diante de
mim; porém descubro que tenho em mim mesmo os próprios princípios contra os
quais estas proibições são expressamente dirigidas.
Ainda mais, o próprio fato de me ser
proibido matar mostra que o homicídio está em minha natureza. Não havia
necessidade de me ser proibido fazer uma coisa que eu não tinha inclinação para
fazer; porém, a revelação da vontade de Deus, quanto ao que eu deveria ser,
mostra a tendência da minha vontade para ser aquilo que não devo. Isto é bem
claro, e está perfeitamente de acordo com todo o ensino apostólico sobre este
assunto.
Não somos Justificados pela Lei
Muitos, contudo, admitem que não
podemos obter vida pela lei, mas sustentam, ao mesmo tempo, que a lei é a nossa
regra de vida. Ora, o apóstolo declara que "Todos aqueles... que são das
obras da lei, estão debaixo da maldição" (Gl 3:10). Pouco importa a sua
condição individual, se estão sobre o terreno da lei, acham-se, necessariamente,
sob a maldição.
Pode ser que alguém diga: "Eu
estou regenerado, e, portanto, não estou exposto à maldição." Porém, se a
regeneração não retira o homem do terreno da lei, não pode pô-lo para lá dos
limites da maldição da lei. Se o cristão estiver debaixo da lei, está exposto,
necessariamente, à maldição da lei.
Mas, que tem que ver a lei com a
regeneração?- Onde é que vemos que se trate da regeneração no capítulo 20 de
Êxodo? A lei tem apenas uma pergunta a fazer ao homem — uma pergunta curta, solene
e direta —, a saber: "És tu o que deverias ser?"
Se a resposta é negativa, a lei não
pode senão lançar os seus terríveis anátemas sobre o homem e matá-lo. E quem
reconhecerá mais prontamente e mais profundamente que, em si mesmo, não é
aquilo que deveria ser senão o homem verdadeiramente regenerado?- Portanto, se
está debaixo da lei, está, inevitavelmente, debaixo da maldição.
Não é possível que a lei diminua as
suas exigências ou se misture com a graça. Os homens procuram sempre baixar o
seu padrão; sentem que não podem elevar-se à medida da lei, e, então, procurar
rebaixá-la até si; porém este esforço é vão: a lei permanece em toda a sua
pureza, majestade e inflexibilidade austera, e não aceitará nada menos que uma
obediência perfeita; qual é o homem, regenerado ou não, que pode intentar
obedecer assim?
Dir-se-á: "Nós temos a perfeição
em Cristo". Sem dúvida, mas não é pela lei, mas, sim, pela graça; e não
podemos, de nenhum modo, confundir as duas dispensações. As Escrituras
ensinam-nos claramente que não somos justificados pela lei; nem a lei é a nossa
regra de vida.
Aquilo que só pode amaldiçoar nunca
poderá justificar, e aquilo que só pode matar nunca poderá ser uma regra de fé.
Seria como se um homem tentasse fazer fortuna valendo-se de uma ação de
falência movida contra si.
Um Jugo Impossível de Levar
O capítulo 15 do livro de Atos
mostra-nos como o Espírito Santo respondeu à tentativa que se pretendera fazer
para pôr os crentes sob a lei, como regra de vida.
"Alguns,
porém, da seita dos fariseus, que tinham crido, se levantaram, dizendo que era
mister circuncidá-los e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés"
(versículo 5).
Isto não era mais do que o silvo da
antiga serpente fazendo-se ouvir nas sugestões sinistras e desanimadoras desses
primitivos legalistas. Mas vejamos como o assunto foi resolvido pela poderosa
energia do Espírito Santo e a voz unânime dos doze apóstolos e de toda a
Igreja.
"E,
havendo grande contenda, levan-tou-se Pedro e disse-lhes: Varões irmãos, bem
sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu, dentre vós, para que os gentios
ouvissem da minha boca a palavra do evangelho e cressem".
O quê? As exigências e as maldições da
lei de Moisés? Não; bendito seja Deus, esta não era a mensagem que Deus queria
fazer chegar aos ouvidos de pecadores perdidos. Ouvissem, então, o quê"?
"OUVISSEM
DA MINHA BOCA A PALAVRA DO EVANGELHO E CRESSEM".
Aqui estava a mensagem que correspondia
ao caráter e natureza de Deus. Ele nunca teria perturbado os homens com uma
linguagem triste de exigências e proibições. Esses fariseus não eram Seus
mensageiros — muito pelo contrário. Não eram portadores de boas novas, nem
anunciadores da paz, e portanto os seus pés eram tudo menos
"formosos" aos olhos d'Aquele que Se deleita em misericórdia.
"Agora, pois", continua o
apóstolo, "porque tentais a Deus, pondo sobre
a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós pudemos
suportar" Esta linguagem era grave e forte. Deus
não queria pôr "um jugo sobre a cerviz" daqueles cujos corações haviam sido libertados pelo evangelho da paz.
Antes pelo contrário, desejava exortá-los a permanecerem na liberdade de Cristo
e a não se meterem "outra vez debaixo do jugo da
servidão" (Gl. 5:1).
Não enviaria aqueles a quem havia
recebido em Seu seio de amor "ao monte palpável" para os aterrorizar
com a "escuridão", "trevas", e "tempestade" (Hb
12:18). Isso seria impossível. "Mas cremos", diz Pedro,"que seremos
salvos PELA GRAÇA DO SENHOR JESUS CRISTO, como eles
também" (At 15:11). Tanto os judeus, que tinham recebido a
lei como os gentios, que nunca a receberam, deviam agora ser "salvos"
pela "graça".
E não somente deviam ser "salvos
pela graça", mas estar "firmes" na graça (Rm 5:2) e crescer na
graça (2 Pe 3:18). Ensinar outra coisa era tentar a Deus. Esses fariseus
subvertiam os próprios fundamentos da fé cristã; e o mesmo fazem todos aqueles
que procuram pôr os crentes debaixo da lei.
Não existe mal ou erro mais abominável
aos olhos de Deus do que o legalismo. Escutai a linguagem enérgica — os acentos
de justa indignação — de que se serve o Espírito Santo, a respeito desses
doutores da lei:
"Eu
quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando" (Gl 5:12).
Mas, deixai-me perguntar, os
pensamentos do Espírito Santo mudaram a este respeito? Já deixou de ser tentar
a Deus pôr um jugo sobre a cerviz do pecador? E segundo a Sua vontade graciosa
que a lei seja lida aos ouvidos dos pecadores?
Responda o leitor a estas interrogações
à luz do capítulo 15 de Atos e da Epístola aos Gálatas. Estas Escrituras, ainda
mesmo que não houvesse outras, são suficientes para provar que a intenção de
Deus nunca foi que os Gentios "ouvissem a palavra" da lei. Se fosse
essa a Sua intenção, o Senhor teria, certamente, escolhido alguém para a
proclamar aos seus ouvidos.
Mas não; quando proclamou a Sua
"lei terrível", Ele falou numa só língua; porém quando
proclamou as boas novas de salvação, pelo sangue do Cordeiro, falou na língua "de todas as nações que estão debaixo do céu". Falou de tal modo
que cada um, na sua própria língua em que havia nascido, pudesse ouvir a doce
história da graça (At 2:1 -11).
A Mensagem da Graça
Além disso, quando Deus deu, no monte
Sinai, as exigências severas do concerto das obras, dirigiu-Se exclusivamente a umpovo. A sua voz foi ouvida unicamente dentro dos estreitos limites da
nação judaica; porém, quando, nas planícies de Belém, "o anjo do
Senhor" proclamou "novas de grande alegria", acrescentou estas
palavras características, "que será para todo o povo" (Lc 2:10).
Quando o Cristo ressuscitado enviou os
Seus arautos de salvação, a Sua mensagem era redigida assim:
"Ide
por todo o mundo, pregai o
evangelho a toda a criatura" (Mc 16:15).
A onda poderosa da graça, que tinha a
sua origem no seio de Deus e o seu leito no sangue do Cordeiro, estava
destinada a elevar-se, na energia irresistível do Espírito Santo, muito acima
dos estreitos limites de Israel e rolar através do comprimento e largura de um
mundo manchado de pecado. "Toda a criatura" devia ouvir "na sua
própria língua" a mensagem da paz, a palavra do evangelho, o relato da
salvação pelo sangue da cruz.
Finalmente, para que nada pudesse
faltar para dar a prova aos nossos corações legalistas que o monte Sinai não
era, de modo nenhum, o lugar onde os segredos profundos do coração de Deus
foram revelados, o Espírito Santo disse, tanto por boca de um profeta como de
um apóstolo:
"Quão
formosos os pés dos que anunciam a paz, dos que anunciam coisas boas!" (Is
52:7; Rm 10:15).
Porém, daqueles que queriam ser
doutores da mesma lei o Espírito Santo disse:
"Eu
quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando" (Gl 5:12).
A Lei de Deus e o Evangelho
Desta forma, é evidente que a lei não é
nem o fundamento de vida para o pecador nem a regra de vida para o cristão.
Cristo é tanto uma coisa como a outra. Ele é a nossa vida e a nossa regra de
vida. A lei só pode amaldiçoar e matar. Cristo é a nossa vida e justiça.
Ele fez-Se maldição por nós sendo
pregado no madeiro. O Senhor desceu ao lugar onde estava o pecador— ao lugar da
morte e do juízo —, e, havendo, pela Sua morte, cumprido inteiramente tudo que
era ou poderia ser contra nós, tornou-Se, na ressurreição, a origem de vida e o
fundamento de justiça para todos os que crêem no Seu nome.
Possuindo assima vida e a justiça
n'Ele, somos chamados para andar, não apenas como a lei ordena, mas "como
ele andou" (1 Jo 2:6). Será desnecessário afirmar que matar, cometer
adultério ou roubar, são atos diretamente opostos à moral cristã.
Mas se um cristão regulasse a sua vida
segundo esses mandamentos ou de acordo com o decálogo produziria esses frutos
raros e delicados de que fala a espístola aos Efésios?- Poderiam os dez
mandamentos fazer com que um ladrão não roubasse mais e trabalhasse a fim de
poder ter que dar?
Transformariam jamais um ladrão num
homem laborioso e liberal. Não, por certo. A lei diz: "Não furtarás";
mas acaso diz, "dá àquele que está em necessidade" — vai, dá de comer
ao teu inimigo, veste-o e abençoa-o —, vai e alegra por teus sentimentos
benevolentes e teus atos beneficentes o coração daquele que procura sempre
prejudicar-te?
De modo nenhum; e, contudo, se eu
estivesse sob a lei, como regra, ela só podia amaldiçoar-me e matar-me. Como
pode ser isto, sendo o padrão do Novo Testamento muito mais
elevado"?
É porque sou fraco e a lei não me dá
forças nem me mostra misericórdia. A lei exige força daquele que não tem
nenhuma e amaldiçoa-o se ele não pode mostrá-la. Mas o evangelho dá forças àquele que não tem
nenhuma, e abençoa-o na manifestação dessa força. A lei propõe a vida como o fim da
obediência; o evangelho dá vida como o próprio e único fundamentode obediência.
Mas, para não fatigar o leitor à força
de argumentos, pergunto, se a lei é, realmente, a regra de vida do crente, em
que parte do Novo Testamento se apresenta ela assim? Evidentemente o apóstolo
não tinha tal pensamento quando disse.
"Porque,
em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas
sim o ser um nova criatura. E, a todos quantos andarem conforme esta regra, paz
e misericórdia sobre eles e sobre o Israel de Deus" (Gl 6:15-16).
Qual regra? A lei?- Não, mas sim a
"nova criatura".
No capítulo 20 de Êxodo não encontramos
uma só palavra quanto à "nova criação". Pelo contrário, este capítulo
é dirigido ao homem tal qual ele é, no seu estado natural da velha criação, e
põe-no à prova para saber o que ele pode realmente fazer.
Ora se a lei era a regra pela qual os
crentes deviam andar, por que pronuncia o apóstolo a sua bênção sobre os que
andam segundo uma regra totalmente diferente? Por que não diz ele, "a
todos quantos andarem conforme a regra dos dez mandamentos"?
Não é evidente, segundo esta passagem,
que a Igreja de Deus tem uma regra mais elevada segundo a qual deve andar? É,
indiscutivelmente. Os dez mandamentos, embora façam parte, como todos os
verdadeiros crentes admitem, do cânon de inspiração, nunca poderiam ser a regra
de fé para todo aquele que tenha, pela graça infinita, sido introduzido na nova
criação — todo aquele que tem recebido nova vida em Cristo.
A Lei é Perfeita
Mas, pode perguntar-se, "a lei não
é perfeita? E se é perfeita que mais pode desejar-se?- A lei é divinamente
perfeita. Na verdade, a própria perfeição da lei é a razão de amaldiçoar e
matar aqueles que não são perfeitos e pretendem subsistir perante ela.
"A
lei é espiritual, mas eu sou carnal" (Rm 7:14).
É inteiramente impossível fazer-se uma
ideia justa da perfeição e espiritualidade da lei. Porém, esta lei perfeita
estando em contato com a humanidade caída — esta lei espiritual entrando em
contato com a mente carnal — só podia produzir a "ira" e a
"inimizade" (Rm 4:15; 8:7).
Por quê?- É porque a lei não é
perfeita?- Ao contrário, é porque ela o é e o homem é pecador. Se o homem fosse
perfeito cumpriria a lei em toda a sua perfeição espiritual; e até mesmo no
caso de crentes verdadeiros, embora tragam ainda consigo uma natureza
corrompida, o apóstolo ensina-nos:
"Para
que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas
segundo o espírito" (Rm 8:4): ".. .porque quem ama aos outros cumpriu
a lei... O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o
amor" (Rm 13:8 e 10).
Se eu amar o próximo não furtarei
aquilo que lhe pertence; pelo contrário, procurarei fazer-lhe todo o bem que
puder. Tudo isto é claro e fácil de compreender por uma alma espiritual; mas
não toca na questão da lei, quer seja como fundamento de vida do pecador ou de
regra de vida para o crente.
Os dois grandes Mandamentos
Se considerarmos a lei sob as suas duas
partes importantes, vemos que ordena ao homem amar a Deus de todo o seu
coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças, e amar ao próximo como a
si mesmo. Tal é o resumo da lei. Eis o que a lei exige, e nada menos.
Mas qual é o filho caído de Adão que
jamais pôde responder a esta dupla exigência da lei? - Qual é o homem que pode
dizer que ama Deus desta maneira? "...a inclinação da carne" (quer
dizer, a inclinação que temos por natureza) "é inimizade contra Deus"
(Rm 8:7). O homem aborrece a Deus e os Seus caminhos.
Deus veio na Pessoa de Cristo e
manifestou-Se aos homens, não na magnificência esmagadora da Sua majestade, mas
com todo o encanto e a doçura de graça perfeita e condescendência. Qual foi o
resultado? O homem aborreceu a Deus: "...me aborreceram a mim e a meu
Pai" (Jo 15:24).
Mas dirá alguém, "o homem devia
amar a Deus". Sem dúvida, e merece a morte e a perdição eterna se o não
fizer. Mas poderá a lei produzir este amor no coração do homem? Era esse o seu
fim? De maneira nenhuma, "porque a lei opera a ira".
A lei encontra o homem num estado de
inimizade contra Deus; e, sem alterar nada desse estado — porque esse não era o
seu objetivo — manda que ele ame a Deus de todo o seu coração, e amaldiçoa-o se
o não fizer.
Não pertencia ao domínio da lei alterar
ou melhorar a natureza do homem; nem tampouco podia dar-lhe o poder de cumprir
as suas justas exigências. Dizia: "Faze isto é viverás". Mandava que
o homem amasse a Deus. Não revelava aquilo que Deus era para o homem, mesmo na
sua culpa e ruína; mas dizia ao homem aquilo que ele deveria ser para Deus.
Era uma obra triste. Não se via em tudo
isto o desenrolar dos atrativos poderosos do caráter divino, produzindo no
homem verdadeiro arrependimento para com Deus, fundindo o seu coração de gelo
e elevando a sua alma em verdadeiro afeto e adoração sincera. Não; era um
mandamento inflexível para amar a Deus; e, em vez de produzir amor, opera
"a ira" — não porque não devesse ser amado, mas porque o homem era
pecador.
Depois, lemos; "Amarás ao teu
próximo como a ti mesmo". Como pode "o homem natural" fazer
isto? Ama ao seu próximo como a si mesmo? - É este o princípio que se observa
nas câmaras de comércio, na bolsa, nos bancos, nos negócios, nas feiras e nos
mercados deste mundo"?
Ah, não! O homem não ama o seu próximo
como a si mesmo. Sem sombras de dúvida, deveria fazê-lo, e se a sua condição
fosse boa, ele o faria. Mas é mau — inteiramente mau — e a menos que nasça de
novo da Palavra e do Espírito Santo, não pode ver nem entrar no reino
deDeus(Jo3:3-5). A lei não pode produzir este novo nascimento. Mata "o
homem velho", mas não cria, nem pode criar "o homem novo".
Com efeito, sabemos que o Senhor Jesus
reuniu na Sua gloriosa Pessoa tanto Deus como o nosso próximo, visto que era,
segundo a verdade fundamental da doutrina cristã, "Deus manifestado em
carne" (1 Tm 3:16).
Como foi Ele tratado pelo homem? Amou-O
de todo o seu coração ou como a si mesmo?- Ao contrário: crucificou-O entre
dois salteadores depois de haver, antecipadamente, preferido um ladrão e
malfeitor a este bendito Senhor que andara fazendo bem — que tinha vindo da
eterna morada de luz e amor, sendo Ele Próprio a personificação viva dessa luz
e desse amor — Cujo coração tinha sempre palpitado com a mais simpatia pela
necessidade humana e Cuja mão estivera sempre disposta a enxugar as lágrimas do
pecador e a aliviar os seus sofrimentos.
Assim, contemplando a cruz de Cristo,
vemos nela uma demonstração irrefutável do fato que não está ao alcance da
natureza ou capacidade do homem guardar a lei.
Adoração
Depois de tudo que temos visto, há um
interesse particular para o homem espiritual observar a posição relativa de
Deus e o pecador no fim deste memorável capítulo.
"Então,
disse o Senhor a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel:... Um altar de terra
me farás e sobre ele sacrificarás os teus holocaustos, e as tuas ofertas
pacíficas e as tuas ovelhas, e as tuas vacas; em todo lugar onde eu fizer celebrar
a memória do meu nome, VIREI ATI E TE ABENÇOAREI. E, se me fizeres um
altar de pedras, não o farás de pedras lavradas; se sobre ele levantares o teu
buril, profaná-lo-ás. Não subirás também por degraus ao meu altar, para que a
tua nudez não seja descoberta diante deles" (versículos 22 á 26).
Não vemos nesta passagem o homem na
posição de fazer obras, mas nade um adorador: e isto no fim do capítulo 20 do
Êxodo. Este fato ensina-nos claramente que o ambiente de Sinai não é aquele que
Deus quer que o pecador respire — o monte de Sinai não é o lugar próprio para o
encontro de Deus com o homem:
"..
.em todo o lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome virei a ti e te
abençoarei".
Como esse lugar onde Jeová faz celebrar
a memória do Seu nome, e onde vem para abençoar o Seu povo em adoração, é diferente dos
terrores do monte fumegante!
Mas, além disso, pode encontrar-Se com
o pecador num altar sem pedras lavradas ou degraus — um lugar de culto cuja
construção não necessita da arte do homem ou esforço humano para dele se
aproximar. As pedras lavradas por mão do homem só podiam manchar o altar e os
degraus só podiam descobrir a "nudez" humana.
Que símbolo admirável do lugar onde
Deus encontra agora o pecador, a própria Pessoa e obra de Seu Filho, Jesus
Cristo, em Quem todas as exigências da lei e da justiça e da consciência são
perfeitamente cumpridas!
Em todos os tempos e em todos os
lugares, o homem tem estado sempre pronto, de um modo ou de outro, a levantar
os seus instrumentos na construção do seu altar ou para se aproximar dele pelos
degraus de sua própria invenção. Porém, o resultado dessas tentativas tem sido a contaminação e a nudez...
"Todos
nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; e
todos nós caímos como a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos
arrebatam" (Is 64:6).
Quem se atreveria a aproximar-se de
Deus com um vestuário de "trapo da imundície?" Ou quem poderá
adorá-Lo na sua "nudeza" Que maior absurdo poderia haver do que
pensar em chegar à presença de Deus de um modo que necessariamente inclui
contaminação ou nudez?
E contudo sucede assim sempre que o
esforço humano é empregado para abrir o caminho para Deus. Não somente esse
esforço é desnecessário como está marcado com a contaminação e a nudez. Deus
veio tão perto do pecador, até mesmo à profundidade da sua ruína, que não há
necessidade de ele levantar o instrumento da legalidade ou de subir os degraus
da justiça própria — fazê-lo é apenas expor a sua imundícia e a sua nudez.
São estes os princípios com que o
Espírito Santo termina esta parte notável deste livro inspirado. Que Deus os
inscreva em nossos corações de forma a podermos compreender claramente a
diferença essencial entre a LEI e a GRAÇA.
-----------------
Notas:
[1] Lemos no capítulo 20 de Êxodo a augusta lei de Deus, as "dez palavras" (Êx 34:28 - Almeida Versão Atualizada) dadas aos filhos de Israel, por meio de Moisés, no monte Sinai. Dos dez mandamentos, oito são negativos e dois positivos; nove de caráter moral e um cerimonial. A natureza de Deus é imutável e, como conseqüência, vemos que os nove mandamentos que são essencialmente de caráter moral têm seu correspondente no cristianismo.
Lembre-se, no cristianismo não estamos sob a lei, mas sob a graça. Não estamos sob a letra dos dez mandamentos. Estamos sob o seu equivalente moral ensinado nas epístolas, exceto no caso do único mandamento que era cerimonial, ou seja, o shabbat. Não existe nada que tenha o seu equivalente no cristianismo. Os outros nove mandamentos - quanto ao seu conteúdo moral - nós os temos, porém não da forma de "fareis" e "não fareis", porém como a expressão da nova natureza que temos, como nascidos de Deus. Jamais nos lamentaremos se assim os respeitarmos. Será para nosso bem agora e por toda a eternidade. A justiça da lei será cumprida em nós (Rm 8:4). Assim o fruto do Espírito será produzido em amor para com Deus e para com todos que são nascidos de Deus.
"O amor não faz mal ao próximo. De
sorte que o cumprimento da lei é o amor" (Rm 13:10).
C. H. Brown
[2] Ao contrário da King James Version (inglês), que emprega a palavra transgressão, as traduções em português de João Ferreira de Almeida e de António Pereira de Figueiredo empregam o vocábulo iniquidade, o qual nos parece estar mais conforme com o original (N. do T.).
Extraído do livro "Estudo Sobre o Livro de Êxodo" de C. H. Mackintosh
Adaptado por Hélio S. Júnior










Nenhum comentário:
Postar um comentário